sábado, 13 de junho de 2020

Os desafios dos estados que começam a flexibilizar a quarentena no Brasil


Desde o começo da crise sanitária, grande parte da atenção do Brasil está voltada para o que acontece em São Paulo. A capital do estado serviu como a porta de entrada do coronavírus no país, quando um homem de 61 anos, vindo da região da Lombardia, na Itália, acusou os sintomas, procurou o hospital Albert Einstein e recebeu o primeiro diagnóstico de Covid-19. 

Um mês antes, com base no que já ocorria fora do país, o governador João Doria (PSDB) começou a formar um comitê de gestão prevendo a crise que fatalmente chegaria por aqui. Em março, São Paulo foi um dos primeiros estados do país a adotar a quarentena com o objetivo de tentar conter a velocidade de expansão do vírus e ganhar tempo para preparar o sistema de saúde a fim de evitar um colapso, e acaba de anunciar parceria para a fabricação da primeira vacina no país. 

Passados três meses, continua sendo o epicentro da doença em território nacional, concentrando 25% das mortes do país. Mas essa participação chegou a ser de 88% no início da crise. 

O índice de ocupação das UTIs, que ficou perto de 90% no fim de maio, encontra-se hoje em torno de 70%. Outro dado animador: a taxa de contágio da Covid-19 caiu de quase seis pessoas para menos de duas depois que medidas de distanciamento social foram adotadas.

Na última quarta, 10, os olhares se viraram mais uma vez para os paulistas, quando o estado passou a fazer parte de um movimento do país de uma retomada cautelosa que abriu a esperança de que a vida possa começar a se normalizar em um futuro não muito distante. 

Complexa mesmo em países com muito mais recursos, essa reabertura gradual ganha contornos ainda mais delicados no Brasil. Ao contrário das nações do exterior, que só entraram nessa fase com a queda nas estatísticas, São Paulo deu o passo com números ainda altos de registros da doença. No mesmo dia em que liberou a abertura do comércio de rua e de shoppings em algumas cidades, o estado registrou pelo segundo dia seguido o número mais alto de óbitos (340). 

De acordo com especialistas, chegou-se ao momento de pico da doença, e as estatísticas vão se manter altas ainda por um tempo, até começarem a cair de forma expressiva (na quinta 11, o total de mortos foi de 283). 

Mas a expectativa de que a curva possa em breve ser descendente está baseada em cenários como o da capital do estado: na maior metrópole do país, com 12,2 milhões de habitantes, que equivalem a 30% da população do estado, o ritmo de crescimento das contaminações agora é de 1,8%, ante os 5% registrados em abril. 

Além disso, a média de evolução das mortes também diminuiu na última semana, passando de 18% por dia para 13%. “Não é um ‘liberou geral’, continuamos em quarentena, mas de forma mais seletiva”, afirmou a VEJA o governador João Doria. “Conviver com o vírus, com o máximo de segurança, mas também com garantia de atendimento hospitalar de qualidade, é o desafio que continuará presente.”

O equilíbrio durante esse período de transição e o cumprimento das orientações, aliás, serão fundamentais para o sucesso da reabertura. De acordo com as regras previstas em decreto estadual, as lojas de rua no estado só podem funcionar quatro horas diárias, das 11 às 15 horas, e os shoppings, das 16 às 20 horas, com atendimento limitado em 20% da capacidade dos estabelecimentos. Essa fase de flexibilização, porém, só é autorizada quando cada cidade obtém determinada pontuação que aponte equilíbrio entre capacidade hospitalar disponível e quantidade de casos registrados. Os dados são avaliados a cada semana e novas decisões são tomadas a cada quinze dias. 
No momento, a velocidade de contaminação no interior é o que mais preocupa. Por isso, cidades como Ribeirão Preto, que se encontrava em uma fase mais avançada de flexibilização, tiveram de fechar novamente serviços não essenciais. “Casos novos vão continuar a crescer, mas as mortes tendem a diminuir, embora estejam hoje em patamares altos”, diz João Gabbardo dos Reis, ex-secretário executivo do Ministério da Saúde, que integra desde maio o time de especialistas do governo paulista. Gabbardo, por sinal, era considerado pelo ex-chefe Luis Henrique Mandetta uma das peças fundamentais da pasta na luta contra a Covid-19.


Com um modelo semelhante ao de São Paulo, o Rio de Janeiro começou também a abrir as portas, só que de uma forma mais tumultuada. Por causa da falta de sintonia entre o governador Wilson Witzel (PSC) e o prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), adversários políticos, muita gente fez caminhada na orla e ocupou as areias das praias porque não sabia que ordens seguir. 
À noite, bares ficaram mais cheios do que deveriam. Em apenas uma semana, as regras da quarentena mudaram três vezes devido a decisões judiciais com autorizações e proibições que confundiram a população. A falta de uma linha clara provocou um abre e fecha do comércio, de serviços e de áreas de lazer, entre outros setores. Mas a direção é inequívoca: rumo à flexibilização. 
No ambito do estado, agora, é permitida, por exemplo, a abertura de shoppings, bares e restaurantes com 50% da capacidade e em horários limitados. Igrejas, construção civil e indústrias também podem funcionar, além de atividades esportivas ao ar livre. A taxa de ocupação de pacientes com Covid-19 nos leitos dos hospitais, que caiu de 68% para 54%, possibilitou esse afrouxamento.
Em maior ou menor grau, esse processo ganha força em outras regiões do Brasil. Primeira capital a entrar em quarentena, Belo Horizonte executa a retomada da atividade econômica desde o dia 25 de maio, em esquema mais tranquilo, e já entrou na segunda fase da flexibilização. Apesar de a ocupação dos leitos de UTI ter aumentado após a retomada, de 48% para 72%, o último dado, 68%, mostra que a situação é estável e não saiu de controle. No Sul, a vida está mais próximo da normalidade também. No último dia 8, vários municípios de Santa Catarina voltaram a ter circulação de ônibus, evidentemente com algumas restrições, como uso de máscara, limite de lotação e proibição do pagamento em dinheiro. Florianópolis registrou no sábado 6 apenas a oitava morte por Covid-19, após mais de um mês sem óbitos pela doença. De máscara, as pessoas por ali já andam nas praias, passeiam nos shoppings e frequentam restaurantes.
O cansaço da população com relação ao esquema prolongado de isolamento e as pressões econômicas e políticas ajudaram, sim, a precipitar alguns movimentos de flexibilização. 
De acordo com uma pesquisa do Ibope em São Paulo, a rejeição das pessoas às políticas de quarentena do prefeito Bruno Covas e do governador Doria aumentou entre abril e maio. Mas, embora existam críticas e pressões, o plano de reabertura do governo paulista é baseado em dados, cauteloso e permite ajustes caso o passo dado seja maior que as pernas. 
Na capital, por exemplo, o índice de ocupação de 20% permitido para a reabertura do comércio é um dos mais rígidos do país. 
A imposição de limites visa a evitar aglomerações e, ao mesmo tempo, representa uma forma relativamente segura de expor a população ao vírus e criar a chamada imunização de rebanho, quando se tenta promover a imunização natural mais abrangente possível da população em curto prazo. Estudos em outros países, como a China, mostram que a curva começou a ceder quando 20% da população adquiriu resistência à doença. Em São Paulo, os epidemiologistas dizem que esse porcentual ainda não chegou a 3% no estado e oscila por volta de 5% na capital, o que desperta preocupação. “Reabrir o comércio em um momento de estabilidade alta de casos pode agravar a situação”, alerta Eliseu Waldman, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP. Mas a verdade é que, pela ínfima quantidade de testes disponíveis, ninguém sabe ao certo o porcentual da população que já não contrai ou transmite o Sars-CoV-2.
A boa notícia é que (ufa!) existe vida pós-pandemia e, se todas as cautelas forem tomadas, podemos chegar a esse estágio em breve. São Paulo e outros estados do Brasil vivem o início desse processo, enquanto há um movimento mundial de volta à normalidade, notadamente na Europa, onde países que figuraram como foco da epidemia no continente passaram a sair do confinamento de forma gradual e já recuperam sua rotina. Após dois meses e meio fechados, cinemas, teatros e casas de espetáculos reabriram as portas em Portugal há cerca de dez dias. 
A Itália liberou recentemente as viagens internas, reabriu as fronteiras e retomou as visitas a um de seus principais pontos turísticos, o Coliseu, em Roma. Na França, como parte do processo de desconfinamento, foi anunciada recentemente a data de reabertura do museu do Louvre, em Paris, fechado desde março. Será em 6 de julho. Os visitantes terão de fazer a reserva on-line e deverão usar máscara para andar pelo local. Mas, enquanto aguardam o retorno do principal museu do país, os parisienses passeiam por parques, tomam um bom vinho nas esplanadas da capital e frequentam as lojas da Champs-Élysées.
Política que permitiu a essas nações chegarem ao estágio atual de descompressão, a necessidade de quarentena gerou desde o começo uma enorme discussão no Brasil. Um dos líderes do cordão de defensores de um rigoroso isolamento, Doria bateu de frente com Jair Bolsonaro nessa questão. 
De acordo com a visão distorcida e irresponsável do presidente, o fechamento do comércio por causa de uma “gripezinha” faz parte de um plano da oposição para afundar o país na recessão e prejudicar sua popularidade. 
O governador tucano, por sua vez, transformou parte das coletivas diárias sobre o coronavírus no Palácio dos Bandeirantes em um poderoso contraponto ao capitão. 
Confrontos políticos à parte, o fato é que o isolamento social ajudou a evitar o pior. Segundo cálculos do governo paulista, quase 100 000 vidas foram salvas no estado graças ao confinamento. 
Com o retorno gradual das atividades, disciplina da população e seriedade das autoridades, que prometem voltar atrás em caso de piora das estatísticas de Covid-19, esse início de reabertura na dura batalha contra o coronavírus pode ser bem-sucedido.
Colaboraram André Siqueira e Cássio Bruno

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